Eis porque é a cabra
de todos os bichos da fazenda
a realista, só ela denuncia maus-tratos
e os revida: marroada é invenção sua
berrar é com ela mesma
Asma - Adelaide Ivánova
A provocação no título do artigo faz referência ao grande incômodo gerado pela artista japonesa Yoko Ono, em suas performances vocais em parceria com John Lennon, seu companheiro. Odiada por fãs dos Beatles, Ono levou a pecha de ter acabado com a banda mundialmente amada, e teve suas performances ridicularizadas.
Até hoje podemos encontrar vídeos com títulos pitorescos como "O dia em que Yoko Ono acabou com a música", "Yoko Ono grita em apresentação nos EUA" ou "Yoko Ono bem que tentou atrapalhar Chuck Berry & John Lennon, mas o engenheiro de som foi ninja ao desligar o microfone da relinchante Ono".
Se colocarmos seu nome no buscador do Google, a sugestão automática é a pergunta “Por que Yoko Ono grita?", ao que ela responde, com sua voz distorcida:
Eu não me importo o que você diz/ Minha voz é real / Minha voz fala a verdade/ Eu não me encaixo em seus caminhos. Yes, I'm a Witch - Yoko Ono
Em sua escrita ensaística "O Gênero do Som", Anne Carson, escritora canadense conhecida por transitar de forma livre entre as formas literárias e de forma mais livre ainda pelas ideias, nos conduz por um apanhado anacrônico que demonstra como os diferentes sons emitidos por mulheres foram considerados ameaças, tanto na literatura grega antiga quanto em causos públicos mais recentes envolvendo mulheres que incomodam com as suas vozes.
Ela não falou da Yoko Ono, mas posso incluí-la aqui no rol das mulheres que incomodam com seus berros, assim como as cabras ou os risos da serpente.
A contenteza do triste
Tristezura do contente
Vozes de faca cortando
Como o riso da serpente
São sons de sins, não contudo
Pé quebrado verso mudo
Grito no hospital da gente
São sons, são sons de sins
Béradêro - Chico César
A bestialidade, aliás, é constantemente associada às mulheres, pelo uso da voz em público. Segundo Carson, "o gemido desolador das Górgonas", "as vozes agudas e horrendas" das Erínias, "comparadas ao gemido de alguém sendo torturado no inferno", "as vozes mortais das Sereias e o perigoso ventriloquismo de Helena", "a tagarelice inacreditável de Cassandra", o "barulho assustador de Ártemis ao adentrar a floresta", o "discurso sedutor de Afrodite" e até a velha Iambe que "grita obscenidades e levanta a saia até o alto para mostrar a genitália" e o "falatório obsessivo da ninfa Eco" são representações das vozes femininas em diferentes contextos, associadas à loucura ou à bruxaria.
No pensamento antigo apresentado por Carson, a bestialidade feminina é representada pela falta de contenção vocal e emocional, que está diretamente associada à falta de contenção sexual:
A cultura antiga se empenhou em construir o feminino como alteridade. A mulher é a criatura que coloca pra fora o que estava do lado de dentro. Por meio de projeções e desvio de todos os tipos - somático, vocal, emocional, sexual -, as mulheres expõem ou esbanjam o que deveria estar do lado de dentro.
A autora chama a nossa atenção para a anatomia grega antiga, na qual o corpo feminino é composto por duas bocas - a boca de cima e a de baixo - ambas ligadas ao corpo por um pescoço e contendo lábios, que devem ficar fechados. Essa associação explicava diversos efeitos corporais, como por exemplo:
"excesso ou obstrução de sangue no útero ficará evidente na perda ou na asfixia da voz" ou "o excesso de exercício vocal resulta na perda da menstruação", a "perda da virgindade faz o pescoço engrossar e deixa a voz mais grave".
Em uma ligação direta, a transformação da boca de baixo resultava em um efeito imediato na boca de cima. Na literatura e mitologia grega, não faltam menções a colocar portas, muros e cadeados nas bocas das mulheres ou, se ela tiver muitas cabeças, bocas e línguas, como a Medusa, decapitá-las.
"Fechar a boca das mulheres era o objetivo de um complexo conjunto de leis na Grécia pré-clássica e clássica", afirma Carson. Quando abertos, esses lábios podiam trazer de dentro para fora coisas indizíveis e perigosas.
Não por acaso, Carson traz no ensaio o curioso contexto de nascimento da psicanálise, já que nessa história, a voz e o sexo das mulheres são as protagonistas. Sabemos desse primeiro caso em que Breuer intitulado Anna O. que marca o nascimento da psicanálise pelo texto publicado mais de vinte anos depois por Freud, Estudos sobre a histeria. Breuer deu voz à Anna O., descobrindo ali toda a potência da fala histérica, inaugurando uma "cura pela fala". Diante da ameaça sexual, Breuer recua e Freud avança.
Parece que aí se estabelece a mesma relação colocada na catarse grega: a conexão direta entre as duas bocas femininas e a saúde das emoções e do corpo, consequências de uma razoabilidade no uso da voz. Como nos lembra Carson, os grego antigos, por meio do conceito sophrosyne recomendavam a contenção verbal como uma solução terapêutica para o excesso de emoções. As emoções eram tratadas de forma pejorativa pois podiam enlouquecer - eram consideradas femininas e eram expressas por meios de sons agudos como gritos, gargalhadas e tagarelice. Já a qualidade de sophrosyne era considerada masculina, sendo expressa em sons graves e seriamente proferidos, com comedimento. Os sons masculinos eram associados à prudência, à moderação, à parcimônia, ao autocontrole e à sanidade mental.
A cura pela fala, portanto, não foi a contribuição mais inovadora da psicanálise, mas sim a possibilidade de escuta que foi aberta na clínica psicanalítica, mesmo que diante do conteúdo sexual.
Ao escutar as mulheres histéricas, Freud foi capaz de avançar sua investigação sobre a constituição inconsciente da subjetividade humana. Essas mulheres, no contexto europeu, como nos traz a psicanalista brasileira Maria Rita Kehl, estavam em uma crise consequência do contraste entre o projeto moderno do início do século XIX e o que era permitido a elas, levaram ao divã a confusão sobre o que era, na época, ser mulher. Às mulheres, o único lugar possível era o de submissão a uma feminilidade criada pelos homens, a qual somente era permitida uma posição de sustentação da virilidade masculina. Assim como na sociedade grega, na cultura europeia a feminilidade também foi construída a partir de muitas proibições associadas às suas características sexuais reprodutivas.
O fato do corpo feminino comportar o útero - esse órgão "misterioso", relacionado a comportamentos desregulados e emoções incontidas - era colocado como uma prova da sua vocação inata à família e ao espaço doméstico, ainda aproximando a feminilidade da natureza e do selvagem em contraponto à inata intelectualidade masculina.
Mesmo Freud tendo sido genuíno na sua escuta, ainda assim era um homem, diante dos "mistérios" da feminilidade. Ao final da sua obra, voltou para as mesmas dúvidas que o motivaram, como se todos os anos de escuta não tivesse sido suficientes para perguntas cruciais que nasceram na clínica psicanalítica.
Em seu percurso, nos lembra Kehl, o criador da psicanálise não foi otimista sobre a cura na clínica psicanalítica para as mulheres, possibilitando uma melhor relação entre as mulheres e a feminilidade. Além disso, Freud declarou sua ignorância sobre a pergunta que ele mesmo se coloca "o que quer uma mulher?", reafirmando o mistério que, segundo Kehl, aponta para uma recusa a saber sobre o seu próprio desejo.
A ameaça da feminilidade continuou diante do olhar do menino no Édipo frente ao horror da sua própria possibilidade de falta e também nos destinos das pulsões, como se à mulher só fosse possível a loucura ou a inveja pela posse do falo, a ser substituída por seu representante: o filho.
O que são, ainda hoje, as coisas indizíveis que as bocas femininas ameaçam dizer e elas são perigosas para quem? Seriam as respostas possíveis para o seu próprio desejo e sobre a sua sexualidade?
É divertido pensar que no gesto de ironia que nas representações mitológicas como da deusa Baubo, ou da velha Iambe, por exemplo, essas mulheres, ao mesmo tempo que falam, riem, se divertem e causam gargalhadas ao mostrar as suas vulvas, como se estivessem zombando: é disso que vocês tem medo?
Podemos supor que o mistério aparece somente no olhar masculino (e infantil) sobre a mulher, para sustentar a ilusão de que são possuidores do falo a partir não de uma diferença, mas de uma "oposição sexual" que coloca a mulher somente em um lugar de falta, como nos apontou a escritora (ensaísta, teórica, dramaturga) argelina Heléne Cixous:
Bastava, reza a lenda, que Medusa mostrasse todas as suas línguas para que os homens saíssem correndo: eles confundiam essas línguas com serpentes. Precisava vê-los fugir, tapando os ouvidos, com as pernas e também outras partes do corpo bambas, ofegantes, já sentindo a mordida.
Cixous, em sua aproximação com a psicanálise, propõe outro foco para esta imagem: as serpentes não são pequenos pênis, mas línguas que podem ser associadas ao poder de criação, à fertilidade feminina. O horror ao feminino estaria ligado ao fato de sua potência de multiplicação, um corpo perigoso pois se desdobra, se faz outros.
Podemos pensar que é a própria psicanálise que nos permite saber que a verdade sobre o próprio desejo pertence ao sujeito mesmo, aqui, no caso, as mulheres analisandas, psicanalistas, artistas que estão há mais de um século falando, gritando e emitindo seus sons incômodos, pois
aquela que revirou dez mil vezes sete vezes sua língua dentro da boca antes de se calar, ou está morta, ou conhece a sua boca melhor do que todos.
Imaginar e escrever a si mesma é o manifesto de Cixoux que, ainda na década de setenta, com seu Riso da Medusa gritou às mulheres: escrevam! gritem! berrem e riam disso tudo, pois só com essa desobediência é possível criar e se incluir no discurso. Kehl nos lembra que é a partir dos deslocamentos produzidos pelo conjunto de mulheres, da criação de saberes múltiplos no discurso, que as feminilidades se produzem.
Podemos pensar que a desobediência feminina parece ecoar de diferentes formas ao longo do tempo, como sintoma, como produção artística, de forma incômoda e constrangedora, até hoje.
Frente ao não do Outro, como artista perspicaz e provocadora que é, Yoko Ono grita porque sim.
PARA ESCREVER, EU LI:
CARSON, Anne (2020). O Gênero do Som. Trad. Marília Garcia. Revista Serrote nº34
CIXOUS, Hélène. (2022). O Riso da Medusa. Trad. Natália Guerellus. Raísa França Bastos. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo.
FREUD, Sigmund (1940/1922). A cabeça de medusa. Trad. Ernani Chaves. Revista Clínica & Cultura v.II, n.II, jul-dez 2013, 91-93
FREUD, S. Estudos de histeria. Parte II (1) Srta. Anna O. In: Obras completas de Sigmund Freud. Volume II. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
IVÁNOVA, Adelaide (2024) Asma. São Paulo: Editora Nos.
KEHL, Maria Rita (2016) Deslocamentos do feminino: a mulher freudiana na passagem para a modernidade. São Paulo: Editora Boitempo.
Adorei o texto. A Anne Carson tb tem um ensaio intitulado Desejo e Sujeira em que ela fala como as mulheres foram associadas na tradição grega a uma ausência de limites, à sujeira enquanto "matéria fora de lugar" e como isso tem relação à etimologia da palavra desejo em grego.
É curioso como seu texto coincidiu com a releitura dos casos clínicos no volume Estudos Sobre a Histeria. Além da sua citação sobre Anna O., há o caso Emmy Von N. e a clássica intervenção, dela, "Oh! Fique quieto! Não diga nada!", de Emmy para Freud, que inaugurou a "associaçao livre". São notáveis no texto todos esses traços repressivos à expressão feminina nas histórias, e os seus efeitos patológicos.
Descobri esses dias no Prime um filme chamado "O Baile das Loucas", que conta das histéricas nesse período. Ainda não assisti, pretendo em breve, mas já fica a dica.